por Pedro Marques
Primeiro fez-se Clusters (Ateliê Editorial, 2010): poemas tensos em seções temático-conceituais, leitura melódica em percepção harmônica. No plano dos poemas, simultaneidade à musica. No plano do livro, projeto de cada cluster virar livro solo. Cena Absurdo (Ateliê Editorial, 2016) começa isso. Além de enxame crescido, traz dez clusters concentrados, mais harmônicos, dois ou três poemas na página. Atua aí a trinca Amaral-Bonin-Micael, escondendo dinamites nos cachos. Catarses cirúrgicas que devolvem o cluster à música.
Juliana Amaral (voz, composição), Gustavo Bonin e Micael Antunes (ambos composição, edição, mixagem) colhem alguns cachos de Cena Absurdo. Arranjam textos noutras esferas. Outros fluxos para a página que a vista enquadra, para a leitura que a mente escada. Não entoam nem oralizam, poemáudios (diria Beto Pio, nosso diretor) implodindo muros de autoria, arte e mídia.
Cluster 01. O trio mostra as lâminas. Dobras, cortes e colas de sons e sentidos. Reprocessam o enxame maternidade-formação-polícia. Caos contra caos. Imprimir e recortar tudo algumas vezes. O primeiro talhe separa estrofes, o seguinte versos. Baralho de partes feitas novas unidades: estrofes do mesmo poema; estrofes de poemas diferentes; versos do mesmo poema; versos dos três poemas. Novos clusters a partir do primeiro. No player, ordem de audição randômica. A cada clique ordem diversa. Instalação sonora. Pelas barbas de Micael!
Cluster 02. Três timbres juliânicos se digladiam. Clarone estudando escala ascendente. Bronze marcando a vocação programada, tom de chamada, mediania segura, hino a quem nunca faltou iogurte. Clarineta (namorada de Bonin) e a sedução fatal de nossa idade – toda ação é comprar algo, até o verbo contrário à bocarra consumista. Oboé sussurrando perdido na selva da orquestra, fim de quem fica mais escravo quanto mais estuda. Rinha de destinos irmanados na barbárie come-tudo: formação, shopping e adestramento. Contrário à aceleração, vale demorar nesse poemáudio.
Cluster 03. Sexualidade chove enigmas por minuto. Lanhos e afagos a céu encoberto. Um chiado que precipita já da voz que abre, que infiltra pelas demais cenas. Cada qual com sua cegueira a padronizar o cardápio da cama. A ladainha da mãe que tem o filho no porta-retratos que deseja. A locutora entre mestre de cerimônia e aeromoça que avisa, sorrindo, a queda iminente. Armada a Esfinge. O leitor-ouvinte terá tempo de não explodir? O maior perigo da festa é o final.
Cluster 04. Globalização como choque de gentes. Mão que obra, mão que sobra. Incômodo. Kieslowski. Falta de ar, falta de possibilidade, de identidade marcada por ecos que viram um só ruído da miséria. As várias vozes de Juliana prometem locus amoenus, esperança tonal em meio ao caos que, afinal, vence, emplacando o horror que habita a maioria. Brota o Jesus Mendigo meio cantochão sem lugar. A igreja acolhedora, nave mãe, sucumbe à meta empresa. A voz de órgão soçobra nostálgica, adágio contra o negócio da fé.
Cluster 05. Primeiro poema, cabeça sem freio na estrada de cotovelos. Composição mais torta da trinca. Nostalgia do passado é tentação vã, pois tempo chorado no agora amplifica o presente. O passado é finado e pronto, ainda que uma voz retorne, martele o que rolou ou achamos que rolou de volta. Tortura pura. A voz vira copo que enche e escorre da mão sem matar a sede. O cachorrinho playboy é a única criatura a morar no paraíso terreal, delícia perpétua. O gatinho de Bandeira. O verbo violino ruiu o verniz, voltou rabeca curtida no sol. Se Augusto dos Anjos fosse músico…
Cluster 06. Menininha parte rua, parte casa, espectro e carne, fome e saúde. Um detalhe destina a criança, pai herdeiro ou pai escravo, já era o que poderia ser. Violência é nem sonhar com o “poderia”, limiar onde a voz caminha. Pousa os olhos na criança oceano de hipóteses que tudo pode. Jogo de transparências, acaso driblando possibilidades, no poemáudio, palavras alternativas, mas, na real, determinam quem vai elaborar a Lua ou unhar a rua. Muito afeto nesta peça, que Juliana pegou pra ela.
Cluster 07. Estação subterrânea de concreto subumano. A voz rasga o hall inóspito. Em caixa-alta o estar só sob a civilização. Voz anestésica, contagiada do inumano. Mas angústia custa, outra voz faz-se memória irrefreável, faca no rim. Adoniran Barbosa em cena. Não a caricatura dos Demônios da Garoa, a criatura doendo Inês no portão. Tudo máscaras na cidade contraindicada. Atmosfera rarefeita em que “dois estranhos se medem” à foice. Invenção crítico-artística, não tradução sonora do texto.
Cluster 08. Silêncio e sentido. Cada pausa apita a má-fé que racha relações desumanas rejuntadas no calar do medo. O texto maior, discursivo, naturaliza lugares sociais novelizados pela mídia by sponsors. A fala corre o papel sujo dos jornais, lindos quando embalam banana na feira. O pipoqueiro martela, pedal em vários tons, como se a voz tentasse cada porta com fraude. Dá-lhe voz programada na festa publicitária. Quer morra, quer viva, você tem anzol beirando a boca, a capa do Nevermind. O milagre da multiplicação dos anúncios, que Milton cantou no seu disco mais censurado.
Cluster 09. Vender o corpo-carne como saído do extermínio. Tragédia na passarela do cine-moda. Voz maquinal masca a cena. O heroico de Bilac customizado, artinha contemporânea. A língua agora é bela se bravia. O corpo acaba belo não porque sem cultivo, magro porque doente, desintegrando ao vivo. Vender o corpo-intelecto que, em vez da antítese, legitima qualquer nota que dê cachê, foto e currículo. Eventos, colóquios e networkings investem na poesia, a flor do lucro. Premiado, fichado por agentes do rentismo até universitário. Na estrutura de canção do texto dois, esse comércio explode na simultaneidade da parte A com B e na linearidade da C. Um compasso alenta a constatação do objeto poético-sexual. Outro compasso atropela a descrição, que permuta reflexão autoral por opinião replicante. Autismo de caminhão em cor Ferrari. Saldão de corpos e falas e festas.
Cluster 10. Moldura de entonação nervosa. Berro punk. A voz adoça quando o moço desiste da delinquência sem ter para quem doá-la. Revolta de um tempo é ridícula a outro. Quem grita demais vai tomar antibiótico, vai atrair a domesticação do mundo. Acontece da vida crescida ser coleção de passarinhos na gaiola, cantando o que seria. Sempre uma laranja-Fanta-mecânica apazigua o fígado. O desejo murcha a bola, a garrafa vazia de Álvares de Azevedo. No fim, nervura e flacidez duelam na voz que nega o “tudo que você podia ser”, um “nem” narcótico, que caroço é risco demais na vida pré-moldada.
Tenho que esta trinca-trio andou fazendo bombas. Tudo fissão nuclear. Cantora, atriz e compositores expandiram geral. Poemas explodiram outros planos. E eu (re)colho esses cachos nossos. Granada, cachaça que vai abrindo sua queimada por dentro. Quem gosta de fervura, chega junto. Quem não, que vá procurar sua baladinha.